Quarta-feira, 19 de Novembro de 2008

A MORTE

 

 

Por: Alfredo Nobre

 

Durante a semana que passou fomos confrontados com uma série de notícias sobre o desaparecimento de alguns companheiros, vítimas de acidentes fatais nas estradas portuguesas. Por coincidência no passado domingo celebrou-se o Dia Mundial da Memória das Vitimas da Estrada, ao qual também fizemos referência aqui no Cavalo Alado. Não iremos aqui dissecar quais os motivos da sinistralidade rodoviária, quem são os responsáveis, os números das estatísticas... Esse assunto tem sido já bastante falado e debatido, inclusive também por nós, para mais uma vez voltarmos a ele. Hoje iremos concentrar a nossa análise em algo de mais profundo apesar de mais abstracto: A MORTE, simplesmente...
 
 
Se pesquisarmos o tema iremos reparar na quantidade e diversidade de conceitos sobre esta palavra. Tal diversidade é também nos é comum, sendo que cada individuo encara o assunto de forma muito própria, tendo em conta a sua personalidade, os conceitos culturais, religiosos ou étnicos, a influência familiar e também a que recebe do grupo ou grupos a que pertence. Sem pretensões de fazer aqui uma análise sociológica ou antropológica de grande rigor ou valor científico, e até porque nestas áreas sou um perfeito leigo, tentarei, acima de tudo, dar a minha visão sobre a forma como enquanto motociclista encaro este fenómeno.
O acto de pilotar motociclos traz-nos à cabeça de imediato a noção de uma certa precariedade. Ao montarmos num veículo de duas rodas iniciamos um processo que desafia as mais elementares leis da física. Um motociclo não se equilibra por si só, necessitando para tal da intervenção humana. Ora se é aqui que está concentrada a essência do fenómeno do prazer de pilotar motociclos, é também aqui que começa o risco de o não conseguir fazer, de falhar e de criar uma situação de risco. Os acidentes com motociclos, transportam consigo por vezes situações de elevado risco para a vida do piloto e infelizmente conduzem, em determinadas ocasiões, à morte do mesmo.
Então se o acto de pilotar motociclos tem uma carga de risco tão elevada porque continuamos a insistir em faze-lo? À primeira vista não faz sentido que o homem insista em situações de perigosidade evidente. Para os mais pragmáticos fica-se por aqui, não se pilotam motos e ponto! Ora esta postura, infelizmente ainda tão vincada na sociedade que nos cerca corresponde, a meu ver com aquilo a que chamo de “Triunfo da Morte”. Ao aceitarmos que determinado acto pode ter como consequência muito provável outro e ao nos limitarmos a não o praticar estamos a contribuir para algo que pior do que o nosso desaparecimento físico, nos proporciona o desaparecimento emocional ou mesmo espiritual. Explicarei melhor, o acto de viver acarreta por si só uma série de factores de risco que podem culminar com o término do mesmo. Por outro lado a Morte é uma certeza adquirida e que nos acompanha enquanto vivermos e com a qual só temos contacto próprio exactamente a partir do último momento das nossas vidas. Ora se não devemos expor-nos gratuitamente a situações de risco desnecessário, também é certo que não nos podemos deixar tolher pelo medo e pela escravidão de vivermos constantemente com receio de algo que não podemos evitar. Nunca sairíamos de casa porque há acidentes na rua…nunca ficaríamos em casa porque há acidentes domésticos… É aqui, penso, que o mais pragmático dos indivíduos esbarra com a negação dos seus próprios conceitos, e igualmente é minha opinião que isso acontece porque não pode existir pragmatismo em relação à morte. Perante a consciência desse inevitável estado, muitas são as posturas e os conceitos, os quais se traduzem em condutas de vida diversas. Não é o objectivo desta crónica, nem nunca o foi, definir doutrinas ou rumos, todavia entendo aqui poder ter um espaço, que de resto se mantém aberto a outras opiniões e sobre outros temas, onde posso dar a conhecer um pouco daquilo que penso sobre as questões que entendo serem as mais importantes e sobre as quais julgo ser meu dever pronunciar-me. Então, e regressando ao tema desta semana, dizia eu que existem diversas formas de encarar a morte, e de facto, se observarmos atentamente o meio motociclista ele está pejado de simbolismos referentes a ela e ao seu antagonismo, a vida. E porque os dois conceitos, como já atrás vimos, são inevitavelmente indissociáveis, encontramos no meio dos motociclos referências mais ou menos perceptíveis sobre o que representa para nós a vida e a morte.
Muitos Clubes, companheiros, pilotos (sobretudo) utilizam cores alegres e símbolos de vivacidade evidente os quais têm como resultado deixarem em nós um sentimento de calma e tranquilidade perante algo tão arriscado como é pilotar motos. Muitos grupos de Motociclistas associam-se em agremiações onde por vezes começa a ser difícil perceber qual o papel que para eles representam as motos e os motociclistas. Conseguimos ver referências a esta postura de quase vazio total pelo tema de que hoje falamos em agremiações que levam em si ícones e nomes mais ligados á exaltação da vida, da boa vida melhor dizendo. Esgota Pipas, Intéfazpó, Cagarateres, Motoquinhas, SecaPipas, AdegaBoys, são nomes que ditos exactamente desta forma nada revelam sobre a sua vocação de aglomeração de motociclistas, contudo, devo deixar aqui a ressalva de que muitos destes grupos acabam por ter uma postura muito diferente daquela que o nome indicia. Este tipo de referências no meio motociclista nacional encontra por norma eco numa postura muito ligada, como já dissemos á celebração da vida e à participação intensa na mesma. Mesmo no meio das maiores tragédias, a reacção natural é a de dar uma dimensão imensa ao asunto e promover grandes ajuntamentos de motociclistas. Por outro lado em muitos outros Panos (como o do GM DOG) encontramos a expressão da morte traduzida numa caveira, algo que encontramos também nos maiores e mais conhecidos Moto Clubes do mundo. A caveira humana faz parte integral do Pano de agremiações de motociclistas que vão desde os Hell Angels MC, Outlaws MC, Skullspiders, Patriots MC, Marauders MCC, Satan Slaves MC, Sons of Hell MC, The Chosen MC do Counecticut ou mesmo nacionais como os The Outsiders, GM Roda Moinas, Red Knights MC, Grave Diggers ou no caso mais evidente de todos e onde é mesmo utilizado o símbolo do Anjo da Morte, Motoclube Diabos da Noite de S. João de Areias. A escolha deste símbolo tem inevitavelmente, mais em alguns casos certamente do que noutros, a vêr, com a consciência do fim, do limite do terminus de uma viagem a que chamamos vida. No caso de muitos motociclistas e Moto Clubes, este percurso assemelha-se a uma viagem de moto onde o que interessa não são os pontos que se unem nem a sua distância mas sim a forma como se leva essa viagem. Esta convicção de que mais do que o tempo em que estamos em cima de uma moto, conta a forma como estamos, traduz-se sempre num enorme respeito por todos aqueles que tombaram, independentemente das convicções que tinham ou da forma como nos deixaram. Na realidade somos confrontados com a MORTE numa dimensão mais próxima quando esta atinge aqueles que têm algo em comum connosco. E enquanto motociclistas a tragédia que se abate sobre um companheiro, sobre o seu grupo, família e amigos, facilmente nos toca. Para expurgarmos este estigma, muitas têm sido as formas que escolhemos. Para muitos de nós a melhor forma de lidar com o assunto é ignorá-lo. Temos recebido opiniões de alguns companheiros que insistem em que não deve ser dada importância ao assunto, mesmo quando ele se nos revela como se revelou na semana passada. Acho sinceramente, ser esta uma das atitudes mais inadequadas, pois ao tentarmos ignorar a evidencia, como em muitas outras coisas na vida, acabamos não por sair reforçados pelo facto de não despendermos energias com o assunto, mas sim mais fracos pois nunca o soubemos enfrentar com a seriedade e proporção que merece. Do lado diametralmente oposto encontramos companheiros que à força de se preocuparem e lidarem com o assunto se deixam envolver por ele de tal forma que as suas vidas passam a tomar quase a forma de uma cripta, esquecendo-se então que afinal estão vivos e a vida existe para ser vivida. Por outro lado, ainda, estão aqueles que no meio termo vão seguindo a sua viagem de forma a que, sabendo percorrer a grande festa que é a vida, não deixam de estar atentos a um fenómeno do qual um dia irão fazer parte. É então comum que surja ligada á imagem de muitos motociclistas a evocação da morte através de símbolos indicadores. Caveiras, Diabos, Anjos, Cruzes invertidas ou não, cabeças de Cristo, são ícones que muitos se orgulham de ostentar e que para muita gente de fora do mundo das duas rodas não passam de ornamentos de gosto bizarro. Nada é bizarro quando se tem a consciência do porquê das coisas. Além de que as formas que cada um escolhe para levar a sua vida são um direito que assiste a cada um na forma que melhor entender que deva ser. A questão fulcral (será sempre a questão fulcral) é a de sabermos de que forma este ou aquele companheiro coloca o motociclismo mais à frente ou mais atrás na sua lista de prioridades de vida. Ou de que forma o Motociclismo é uma opção de vida ou mais uma moda casual. Não será pelo facto de afirmar ou deixar de o fazer que a nuvem passa a ser Juno. Da mesma forma não adianta aos falsos motociclistas inventarem historietas de viagens fantasmas a justificar o conta-quilómetros que já vinha a miles do stand, para passarem a ter estatutos ou deixarem de o ter. Será antes na justa medida em que forem construindo este meio e mais pensando nele do que em si próprios, que terão o justo reconhecimento pela contribuição que tiverem. Podemos sempre encontrar pela frente um punhado de idiotas com pretensões a dar nas vistas dispostos alinharem em qualquer treta vinda da boca desses "caga milhões" desde que isso continue a contribuir para manter um estatuto que não se possui, e para ir dando nas vistas gratuitamente. Até ai vai indo tudo muito bem, o pior é quando chega a hora do balanço, porque existe sempre uma hora para o balanço das contas, e não existe nada de palpável, de construtivo ou de interessante senão uma vida inteira a sacar benefícios pessoais à pala do estatuto de motociclista. Será talvez, então que muitos de nós daremos conta de que estamos perante notoriedades tão precárias como a própria vida em si, num pequeno ápice tudo se desvanece por ser mal consolidado, tudo se vai com o vento por não possuir raízes, tudo passa da grande fortuna à mais miserável das misérias materiais e espirituais. O passado já nos deu a conhecer exemplos destes e infelizmente irá continuar a dar-nos muitos mais, pelo menos enquanto houver “imortais tontos” à solta por ai.
Por estas razões que afinal se vão prendendo com a vida e com a morte, com a inevitável presença dos contrastes e com a firmeza e inflexibilidade dos princípios, entendi deixar aqui o meu pequeno e modesto contributo, não tratando o assunto de forma emotiva em relação aos casos concretos de contacto com a morte, mas sim tentando acima de tudo perceber como deveremos harmonizar a nossa vida com algo tão natural e concreto mas ao mesmo tempo merecedor de tanto respeito e reflexão. Penso que ao sabermos lidar com o assunto de forma descomplexada e desmistificada, talvez saibamos ir vivendo melhor e talvez consigamos acreditar que quem sabe um dia nos encontraremos todos numa nova dimensão a rolar por estradas infinitas! De qualquer dos modos e acima de tudo, creio que mais importante do que fingir que não existe MORTE, saibamos cada um por si e da forma como achar melhor, lidar com ela para que quando chegar também a nossa hora possamos fazer mais uma viagem nos caminhos da alegria e da felicidade.

 

Uma boa quarta-feira para todos

 
Alfredo Nobre, membro DOG 003
 

 

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publicado por Cavalo Alado às 00:24
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